Abstract
Os debates académicos sobre a natureza política e ideológica do Estado Novo (1932-1974) têm estado na origem de recentes controvérsias historiográficas, assumindo frequentemente as proporções de uma Historikerstreit portuguesa. Como tem vindo a público, nomeadamente na imprensa nacional, os estudiosos do Estado Novo apresentam enfaticamente interpretações divergentes do regime como "fascistas de pleno direito" ou "autoritários conservadores" (não obstante elementos de hibridização).
Estes argumentos foram informados quase exclusivamente pelos resultados de investigação realizada nos domínios da ciência política e da história social e política. Os investigadores de outras áreas disciplinares não têm contribuído para o debate, o que é particularmente evidente no caso das abordagens culturais à arquitectura, cujos praticantes definem, acriticamente e sem recurso a um aparato conceptual como sendo fascistas. A situação é problemática de duas formas. Por um lado, os cientistas políticos e historiadores sociais ignoram o valor empírico da arquitectura, na sua capacidade de "fazer as coisas acontecerem" – nomeadamente pelo seu papel na construção das nações (B. Anderson) e enquanto materialização de “tradições inventadas” (E. Hobsbawm). Por outro lado, os historiadores que estudam a arquitectura mantêm-se alheios às dimensões políticas e ideológicas das formas arquitetónicas. ZARQ pretende precisamente afirmar a importância da arquitectura – devidamente investida das suas dimensões ideológicas e políticas – como um quadro heuristicamente valioso, capaz de trazer novas informações sobre a própria natureza programática do projecto do Estado Novo para a nação, no período que vai desde 1932 a 1945.
Ora, estando o nacionalismo no centro do sistema de valores das ditaduras de direita de entre-guerras, este projeto centra-se principalmente nos processos através dos quais a arquitectura serviu para promover (e inculcar) novas narrativas do nacionalismo português e recriar um sentimento de identidade nacional. Embora a importância da produção arquitetónica para a criação de visões de mundo, em particular, para a criação de imaginários nacionais, tenha sido reconhecida noutros contextos geográficos (Crimson 2004), o seu valor como artefacto cultural tem sido ignorado no caso português.
Ao introduzir formas materiais como fonte e objecto de investigação académica sobre o Estado Novo, ZARQ visa não apenas oferecer uma perspectiva original e contribuir para os debates historiográficos em curso em Portugal, mas também envolver-se criticamente com os estudos internacionais do Fascismo produzidos numa perspectiva cultural.
Do ponto de vista metodológico, o projecto adopta uma abordagem cultural da política, nomeadamente através da "leitura” das “entrelinhas" das formas arquitectónicas, para utilizar a metáfora expressiva de Peter Burke. Em termos de investigação, esta articula-se em torno da seguinte questão principal: se a arquitectura fascista e comunista encarnou o impulso revolucionário dos seus respectivos regimes, o que podemos aprender com a arquitectura portuguesa sob o Estado Novo? Já do ponto de vista empírico, a questão de investigação e das áreas temáticas que dela derivam serão abordadas através de quatro estudos de caso, seleccionados pela sua pertinência em termos de distribuição geográfica, diversidade tipológica (habitação rural e urbana, arquitectura efémera, infra-estruturas públicas) e escala e valor simbólico, nomeadamente:
1. Bairro de Casas Económicas do Ameal (Porto, 1934-38)
2. Arquitectura efémera no contexto das Festas da Cidade de Lisboa (Lisboa, 1935) 3. Barragem Salazar – Pego do Altar, Alcácer do Sal (Setúbal, 1936)
4. Colónia de Pegões (1a fase, Setúbal, 1937)
A análise incluirá sistematicamente os sistemas de representação, recepção e apropriação associados a cada um dos estudos de caso. Em termos conceptuais, esta pesquisa será realizada de acordo com as seguintes ideias-chave: a) dialéctica entre moderno e tradicional; b) identidade exclusiva e encontros externos; c) esferas privadas e públicas.
ZARQ está em continuação directa da minha investigação anterior sobre as ditaduras fascistas e para-fascistas de entre-guerras, que incluiu: a coedição, com R. Griffin, de um número especial, composto por dois volumes, intitulado ‘Architectural Projections of a “New Order” in Fascist and Para-Fascist Interwar Dictatorships’ publicado em Fascism: Journal of Comparative Fascist Studies); a publicação de um artigo sobre "Ideology and architecture in the Portuguese New State”, focado em edifícios governamentais; a coautoria, com António Costa Pinto, de um capítulo de livro sobre ‘“The 'Everyman' of the Portuguese New State during the fascist era: longing for the past or moving towards the future?’ (ver CV). ZARQ permitir-me-á alargar a minha investigação a novas tipologias arquitectónicas, metodologias e fontes primárias, permitindo, por sua vez, uma enriquecer os estudos sobre o Estado Novo.